sábado, 13 de outubro de 2007

Clarice

"Porque às cinco da madrugada de hoje, 25 de julho, caí em estado de graça.
(...)
O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe e existe o mundo. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradia da pessoas e coisas, há uma lucidez que só chamo de leve porque na graça tudo é leve. É uma lucidez de quem não precisa mais adivinhar: sem esforço, sabe. Apenas isto, sabe. Não me pergunte o quê, porque só posso responder do mesmo modo: sabe-se"
(...)
E eis que depois de uma tarde de "quem sou eu" e de acordar à uma hora da madrugada ainda em desespero- eis que três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar."

Quando li Clarice me tornei menos solitária. Água viva é diferente de todos os livros que já tive contato, me parece que tem sangue correndo por aquelas letras, tão vivas elas estão. A solidão que a Água Viva nos rouba(ao mesmo passo que nos traz) é aquela mais triste e bonita. A solidão, que todos nós, inevitavelmente temos. Não é solidão por ausências. É a solidão de sermos quem somos(parece redundante? Não é!) desde que nascemos até o nosso último dia, à cada instante, inafastávelmente.
Sabemos que dois corpos não podem estar no mesmo espaço ao mesmo tempo, o que nos conduz a vermos as coisas em dado momento, por um ângulo que só nós podemos ocupar, isso é incompartilhável. Sei que meu olho é meu, e o teu é teu, e por isso nunca veremos nada igual. E que os caminhos que percorremos, não podem ser os mesmos, embora algumas vezes se cruzem. E que a mente é um campo complexo e desconhecido, que todos nós temos, de forma tão individual quanto as linhas dos nossos polegares.
Ah, como eu queria, por um minuto apenas, compartilhar sensações e pensamentos, em toda sua exatidão. Água viva faz esta mágica: devaneios das noites insones, fluxo confuso de idéias, reflexões indizíveis. Sem crivo, sem pausas. Clarice não compartilha pensamentos formados, ela, corajosamente, se abre para sua solidão e a deixa fluir livremente, desmanchando-se em letras. Simplesmente adentra nosso corpo, com sua alma densa, e nos faz sê-la. É como se estivéssemos por uns dias, vendo com seus olhos, ouvindo por seus ouvidos, sentindo com sua alma. Chegamos quase, a pintar suas telas, tamanha a inspiração que sugamos daquelas páginas.