sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A morte de Beatriz

O mais apreciável em uma narração, às vezes mais que a mensagem final, são essas passagens despretensiosas que transmitem sensações cotidianas, e que passam, no mais das vezes, despercebidas e nunca contadas.
Eu li este conto a primeira vez, e só lembrava do belo momento da visão do Aleph; li a segunda, e passei a descobrir as metáforas; li a terceira e atentei para fascinante passagem em que o narrador esquece-se do que lhe parecia mais importante, Beatriz... Li várias vezes, até me deslumbrar com o sentimento desta passagem:
"Na ardente manhã de Fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Plaza Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o facto doeu-me"
O conto começa com a morte de Beatriz, no entanto, a dor dele não deu-se neste momento, pois, ignorando a morte, Beatriz ainda o habitava. A dor veio a ele, ao ver a renovação do anúncio de cigarros. Neste momento, ele chorou a partida de sua amada, pois sentiu que o universo refazia-se rápido, incessante e indiferente a ausência dela. Quando ele percebeu o descompasso entre o que havia nele e o universo, chorou enfim, a morte de Beatriz. Para ele, não havia dor maior do que ver uma folha cair de uma árvore à revelia de Beatriz, o mundo deveria ter parado para lamentar sua ida.
A dor da perda não é mero lamento pela ausência, é o espirito indignado com o furor do tempo, que passa, renegando aquela inexistência. É o homem, senhor da razão, estranhando a passagem das horas e a mudança das coisas. É a vaga e doída lembrança de que corremos para acompanhar o tempo, pois ele, não nos pode acompanhar individualmente. Ele nunca corre, e nunca para... ele simplesmente passa. Como diz aquela música, cantada pela Nana: "Ele sabe passar, e eu não sei...".

5 comentários:

Anônimo disse...

Bela postagem, minha cara. Encheu meu coração de poesia logo pela manhã dessa terça meio cinzenta. Apenas me pergunto se o que ocorre naquela rejeição da mudança é uma rejeição daquilo que pode confirmar o evento que se quer negar (nesse caso a mudança do anúncio seria uma espécie de ratificação de que ela morreu mesmo) ou uma rejeição da indiferença do tempo e do mundo perante aquele momento capital para a vida do indivíduo (nesse caso a mudança do anúncio seria uma espécie de violação do luto, de desreipeito pela morte mais importante do mundo que acabara de ocorrer). O que você acha?

Camila disse...

Oi André, obrigada pela visita e pelo comentário, você já percebeu que seu blog está favoritado em minha página?
O que eu acho: pelo modo que o narrador comenta, sincero e descompromissado(o parágrafo sobre a indignação com o tempo foi uma mera especulação que não resisti em fazer)e pela velocidade com que os eventos ocorrem(a rapidez com que se passa o fato não parece permitir maiores pensamentos indignados), creio na primeira possibilidade, o fato o doeu de uma forma estranha, aliás, entristecer-se devido a mudança no painel de cigarros, por si só, já é algo inegávelmente estranho. Aliás, creio que seja mais estranheza do que dor, ou talvez, uma dor insólita, ao perceber o primeiro passo da realidade, distanciando-se de Beatriz. Eu imagino que tenha acontecido como uma dessas sensações passageiras, que de tão passageiras, não nos dão tempo de explicá-las a nós mesmos. É do grupo daquelas sensações que, geralmente, não chegam a formar pensamentos. Talvez por isso, sejam difíceis de explicar.
Quanto a indiferença do tempo, caberia no texto, e talvez seja, muito mais poética. Diria que é mais produto da minha imaginação, do que intenção do Borges.
Isso cruza com a sua última postagem, o intencionalismo ou a melhor interpretação? Aliás, qual das duas interpretações te agradou mais?
Ah, não posso deixar de dizer que as duas interpretaçoes podem coexistir(não foi a toa que as juntei), ocorre que a ratificação de que ela morreu, e o o seu distanciamento da realidade, não deixa de ser produto da indiferença do tempo. Ela só morre, porque o tempo continua a passar no instante seguinte do seu último suspiro, se isto não acontecesse, o último suspiro da Beatriz coincidiria com o fim da passagem das horas, e logo, seu último instante na terra, seria em vida, e não, na memória de alguém.

Nossa, esse pequeno comentário do Borges, deu um caldo, né?hehehe Acho que nem ele imaginou a discussão que poderia causar!

Anônimo disse...

Querida, prazer o meu de lê-la e degustá-la saborosamente. Quanto a todo o "caldo" que o comentário do trecho de Borges nos deu, não é de estranhar. Nunca li isso em lugar nenhum, mas estou convencido de que muitos casos de interpretação fértil e controversa, que vai muito além dos dizeres do texto, se devem não apenas ao potencial de auto-ultrapassamento que o texto mesmo já carrega consigo devido ao gênio de sua composição, mas também, e talvez até principalmente, à possibilidade de a interpretação daquele texto "agarrar-se" ou "aderir" a discussões filosóficas que têm muitos lados e muita história por trás de si. Nesse presente caso, trata-se de questões fenomenológicas (quer dizer, relativas a nosso modo de experimentação) da morte e do tempo, o que necessariamente traz para o texto, e traria mesmo que fosse a contragosto do autor ou apesar de suas tentativas de evitá-las, as velhas e viscerais discussões filosóficas àquele respeito. Eu, pessoalmente, prefiro a interpretação da indiferença do tempo, da violação de um luto sagrado. Acho que confere mais densidade sentimental e filosófica ao texto, sem violentá-lo nas suas intenções originais (intenções, claro, do texto, não do autor).

Ah, obrigado pela citação de meu blog como favorito. Devolverei o favor com prazer e sem falsa gentileza, na medida em que este seu espaço constitui mesmo um de meus pontos de visita favoritos. Só poderia, para me fazer mais feliz, ter uma atualização mais constante e diária. Beijos!

Anônimo disse...

Se puder, visite meu blog e comente a postagem "Resumo e crítica: 'De que maneira o direito se assemelha à literatura', de Ronald Dworkin". Seria um prazer trocar idéias com você a respeito do texto e das opiniões que expressei sobre ele.

Unknown disse...

Camila, adorei o que li! Prometo passar mais vezes por aqui.
Continue escrevendo, pois tens o dom.
Beijos.