segunda-feira, 5 de junho de 2017

Poema de avião






Eu queria te chorar, Bahia
És oceano em mim
E água precisa mover
Cair feito chuva
Quebrar feito onda
Correr feito rio

Uma lágrima se atreve
Mas repreendo, ela recua
Minha face está rasa
Nos olhos, baixa-mar
Uma gota azul salgada
Cai para dentro
Na alma, preamar

Voltando de Salvador, em 02/05/2016

quarta-feira, 18 de março de 2015

Calle sin salida

Há quem se entedie em cidades pequenas. A mim, me angustiam as grandes cidades, o desacolhimento das largas avenidas, a solidão dos transeuntes, a pressa sem destino, e, por fim, essa multiplicidade indesfrutável. Para que tantos caminhos diversos se só um podemos percorrer? A vida na capital e essa necessidade de excessos de quem não consegue conviver com a doçura de sua pequenez.

Fujo para os parques, qualquer verde me abranda, mas não é esse verde que preciso, as árvores cercadas de tanto cimento se entristecem, desbotam a aura, perdem a cor e ganham tom de verde-cinzento/cimento. 

Aqui, me escondo do cinza na pequena Bellavista, basta-me esse mínimo quarteirão no alto do bairro em Fernando marques de la plata. À esquerda, La Chascona, casa onde morou Neruda e Matilde, à direita, uma galeria de arte muito simpática que parece extrair o melhor do lugar. Moro aqui por alguns dias em um quadrado alto de poesia cercado por casas coloridas e silêncio, o burburinho da boêmia me chega de longe, mas não é mais alto que a poesia silente que esta rua me diz. 

Ao dobrar a minha esquina, uma plaquinha anuncia: "calle sin salida". Hoje entendo a placa, Neruda é caminho sem fim. Daí porque só escrevia com tinta verde. Ele se sabia eterno. Usava a cor da natureza para que suas palavras estivessem vivas e crescessem em nós, como crescem as árvores.

Tem sido assim todo dia, descobri aqui que a palavra tem cor e da minha janela vejo a poesia germinar em tinta verde, não há muitas árvores no quarteirão, mas o verde aqui é mais vívido que em qualquer lugar de Santiago.

Santiago, 02 de janeiro de 2015.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Porvir

A morte não nos deixa saudosos do que tivemos em vida. Morrer é ter saudades do nosso porvir. É Lamentar o que nunca se fez. É balbuciar, no último suspiro, as palavras entaladas que, agora, só saem como um sopro triste e desgarrado do seu lar silencioso. É chorar não pela perda das imagens já vistas, mas pelos olhos, que agora só abrigam reflexos vazios. Não pelas músicas que já cantaram na alma, mas pelos ouvidos, que não sabem mais o que lhes chega. Não pelo apetite perdido, mas pela língua, sem doce, sem amargo, sem verbo. Pelas mãos gélidas, que moldariam o destino e mudariam o mundo, sem mais calores, sem mais poderes. As palavras arrancadas, as músicas acabadas, a escultura moldada, a semente plantada, não dói ao espírito que se esvai, pois onde o espírito tocou, jaz eterna memória. O que dói é aquilo que não foi feito. E o que dói mais ainda, é aquilo que nem sequer foi pensado. Junto ao sucumbir da carne, se desfazem sonhos, ainda não sonhados.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Retratos escritos

"Quem sabe que o tempo está fugindo,
descobre subitamente a beleza única do momento que nunca mais será."

Ninguém se parece mais contigo
Que o teu retrato
Nele, não há a máscara
Que floreia o ato

Não há nada mais belo
Que o teu retrato
Pois nele, não és passível
Nele não és passável

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O retrato, guardador de instantes
Cristalizador dos detalhes
Guardou o tempo para mim
Nele mora, viva e eterna
A hora que não retorna
A hora que não se apaga.

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Ao olhar o retrato
Vi além da minúscula imagem
Que atravessou meus olhos

Vi o segundo que havia acabado de romper
Vi o instante frágil que precedia
O segundo seguinte
A imagem estática revelou-me então
O inconstante e móvel

A figura mostrava-me o movimento exato do vento
Embalando a dança das folhas
Uma folha estava caindo
Mas ainda não havia alcançado o chão
Minha memória sabia somente da folha já caída

Lembro-me que era noite enluarada
Mas só o retrato fiel
Mostrou-me o reflexo da lua
Tremendo na água

Olhar um retrato
é ver sem os nossos olhos
É ver além do retrato
Ver além do campo de visão

Meu olhar lento
Minha mãos pequenas
Não viam, não tocavam
A imensidão daquele instante

Mas a lente sim
Fez do momento, permanente
E me trouxe o que já era passado
Ela devolveu-me o tempo perdido

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Sobre o ato de florescer

Eu adoro flores, posso passar horas olhando para uma, que o deslumbre não me deixa. Estava em uma feira de plantas apreciando uma orquídea branca, linda e perfumadíssima. A dona da obra de arte da natureza(apesar de plantas serem filhas da terra, e não posse dos homens) me disse que ela só perfumava à noite. Claro que a minha mente viajante não se conteve, e daí começaram as reflexões. Quando a moça me contou que a orquídea só perfumava à noite, eu perguntei se era por causa da escuridão ou das alterações do dia, em outros termos, se ela fosse colocada, ao meio-dia em um quarto escuro, passaria a exalar seu cheiro, ou o contrário, se à noite, ao acender a luz, ela perderia o aroma. A moça não soube me responder. Mas eu, pessoalmente, custo a crer que se possa enganar o pressentimento das flores.

Clarificou-se logo para mim o porquê delas serem brancas, ora, se elas perfumavam à noite, então eram flores que atraiam os insetos para fecundação à noite, e se o "flerte" dava-se na escuridão, precisariam mesmo do branco para sobressair. Simples, né? Para nós, humanos, nem tanto, pois em meio a tantos pre(conceitos), tantas fórmulas, e tanta racionalidade... acabamos por perder o encanto da flores. Nossas estações estão fora de ordem, perdemos o dia da primavera, e não florescemos mais. É isso mesmo, o verbo é "florescer", um místico medieval, Angelus Silésius(eu nunca tinha escutado falar, foi-me apresentado pelo Rubem Alves) disse assim: "A rosa não tem 'porquês'. Ela floresce porque floresce.". É isso mesmo, eu fico impressionadíssima com a inteligência da natureza, nunca escutei falar que uma onze horas(aquela flor que só floresce de manhã) tivesse acordado mal humorada e passado o dia fechada, ou que essas flores brancas da noite(são muitas!) esquecessem-se de perfumar. Por isso elas são encantadoras, por deterem a intuição inquebrável da natureza, elas não aprendem as leis, pois são a própria lei do universo em eterna e perfeita execução. O mundo pode ruir, as flores jamais se esquecerão do seu compromisso divino de nos prestar beleza.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

A morte de Beatriz

O mais apreciável em uma narração, às vezes mais que a mensagem final, são essas passagens despretensiosas que transmitem sensações cotidianas, e que passam, no mais das vezes, despercebidas e nunca contadas.
Eu li este conto a primeira vez, e só lembrava do belo momento da visão do Aleph; li a segunda, e passei a descobrir as metáforas; li a terceira e atentei para fascinante passagem em que o narrador esquece-se do que lhe parecia mais importante, Beatriz... Li várias vezes, até me deslumbrar com o sentimento desta passagem:
"Na ardente manhã de Fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, notei que os painéis de ferro da Plaza Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros louros; o facto doeu-me"
O conto começa com a morte de Beatriz, no entanto, a dor dele não deu-se neste momento, pois, ignorando a morte, Beatriz ainda o habitava. A dor veio a ele, ao ver a renovação do anúncio de cigarros. Neste momento, ele chorou a partida de sua amada, pois sentiu que o universo refazia-se rápido, incessante e indiferente a ausência dela. Quando ele percebeu o descompasso entre o que havia nele e o universo, chorou enfim, a morte de Beatriz. Para ele, não havia dor maior do que ver uma folha cair de uma árvore à revelia de Beatriz, o mundo deveria ter parado para lamentar sua ida.
A dor da perda não é mero lamento pela ausência, é o espirito indignado com o furor do tempo, que passa, renegando aquela inexistência. É o homem, senhor da razão, estranhando a passagem das horas e a mudança das coisas. É a vaga e doída lembrança de que corremos para acompanhar o tempo, pois ele, não nos pode acompanhar individualmente. Ele nunca corre, e nunca para... ele simplesmente passa. Como diz aquela música, cantada pela Nana: "Ele sabe passar, e eu não sei...".

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Espiritualidade

“Quero fazer os poemas das coisas materiais,
pois imagino que esses hão de ser
os poemas mais espirituais.
E farei os poemas do meu corpo
E do que há de mortal.
Pois acredito que eles me trarão
Os poemas da alma e da imortalidade.”
E à raça humana eu digo:
-Não seja curiosa a respeito de Deus,
pois eu sou curioso sobre todas as coisas
e não sou curioso a respeito de Deus.
Não há palavra capaz de dizer
Quanto eu me sinto em paz
Perante Deus e a morte.
Escuto e vejo Deus em todos os objetos,
Embora de Deus mesmo eu não entenda
Nem um pouquinho…
Ora, quem acha que um milagre alguma coisa demais?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres…
Cada momento de luz ou de treva
É para mim um milagre,
Milagre cada polegada cúbica de espaço,
Cada metro quadrado de superfície
Da terra está cheio de milagres
E cada pedaço do seu interior
Está apinhado de milagres.
O mar é para mim um milagre sem fim:
Os peixes nadando, as pedras,
O movimento das ondas,
Os navios que vão com homens dentro
- existirão milagres mais estranhos?”

Espiritualidade, Walt Whitman