sexta-feira, 22 de junho de 2007

Objetos flutuantes

Quando a moça vaidosa passava
Desfilando com seus enfeites
Eu via objetos flutuantes

Via o vestido rodado
O balançar dos tecidos
Via as luvas longas
Contornando a cobiça imóvel

Via os brincos pesados
Acompanharem o vento
Via o colar, as pulseiras
E a música dos pingentes

Via os saltos finos
E seus estalares no chão
Via o pó dispersar-se, aos poucos,
A cada pisada

Via a sombra dela
Mas dela, só via a sombra
A pobrezinha perdeu-se de si
E restaram aqueles apetrechos

E lá iam os objetos
Soltos pelo ar
Presos ao corpo ermo da mocinha
O corpo devia ser jeitoso
Mas foi-se embora
Para acompanhar a alma.

Objetos flutuantes
26 de maio de 2006


Ver objetos contornando vazios, é ver, compadecidamente, o ser que vaga, solitário de si. A solidão chega ao grau extremo e se torna "insentida", de forma que os corpos já não sabem mais que neles há só ausência.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Jardim interior

Todos os jardins deviam ser fechados,
com altos muros de um cinza muito pálido,
onde uma fonte
pudesse cantar
sozinha
entre o vermelho dos cravos
O que mata um jardim não é mesmo
alguma ausência
nem o abandono...
O que mata um jardim é esse olhar vazio
de quem por eles passa indiferente.

Jardim interior, Mario Quintana

O Aleph

Para estrear o blog, nada mais providencial do que explicar o nome: "O Aleph" é o título de um conto do Jorge Luis Borges. A escolha do nome não foi despretensiosa, nem por mim, nem pelo Borges, como ele mesmo explica:

"A sua aplicação ao círculo da minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra dignifica o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo é o espelho e o mapa do superior; Para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. "

O Aleph é descrito no conto como um ponto de dois ou três centímetros, de onde se pode observar todos os inúmeros pontos do universo simultaneamente. Ao olharmos para o Aleph, vemos a noite e o dia simultaneamente; vemos todos os jardins; todas as mortes e todos os nascimentos; todos os livros, e todas as letras solitárias de cada livro. Vemos um infinito de coisas coexistindo sem se confundir, de forma que a linguagem nos prega uma peça. Como descrever esta visão? Impossível, já que a linguagem nos exige uma sucessividade de descrições, e o Aleph é tudo ao mesmo tempo. Ainda assim, Borges se aventura nesta impossibilidade. Aliás, creio que todos os escritores se aventurem em atravessar este universo nebuloso que é a linguagem, para compartilhar algum pontinho ínfimo do seu Aleph.

Não se enganem, todos eles tem seu Aleph, sua fonte secreta e indizível de observar o universo. É de lá que vem a inspiração dos poetas e as poucas verdades que temos do mundo. Foi através do Aleph que Aristóteles intuiu que a terra não poderia ser plana; que Copérnico viu o sol estacionário; que Van Gogh enxergou a beleza reluzente dos girassóis; que Beethoven descobriu as notas da 9ª; que Pessoa conheceu Caeiro. O Aleph é o que alguns chamam de sopro divino. É o momento que a natureza empresta a alguns mortais, os olhos de Deus, e assim, eles podem enxergar o mundo todo com uma nitidez e um brilho especial. Não preciso dizer que é fado deles compartilhar conosco esta imagem.

Meu Aleph abre-se aqui, espero que as palavras corram rápidas, para acompanhar os olhos. Espero inclusive, que elas não desistam desta árdua missão, e que o espaço se faça como o objeto: rico e ilimitado. Deixo o sugestivo parágrafo final do conto, esclarecendo que na estória, Beatriz é a falecida moça pela qual o narrador sempre teve verdadeira adoração(nada que nos impeça de remeter à Divina Comédia):

"Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Tê-lo-ei visto quando vi todas as coisas e esqueci-o? A nossa mente é porosa para o esquecimento; eu próprio começo a falsear, sob a a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.".